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A desigualdade e a erosão do Estado de Direito - Oscar Vilhena - trecho

Invisibilidade, demonização e imunidade

O argumento central proposto aqui é que a exclusão social e econômica, oriunda de níveis extremos e persistentes de desigualdade, causa a invisibilidade daqueles submetidos à pobreza extrema, a demonização daqueles que desafiam o sistema e a imunidade dos privilegiados, minando a imparcialidade da lei. Em síntese, a desigualdade profunda e duradoura gera a erosão da integridade do Estado de Direito. A lei e os direitos sob essas circunstâncias podem, com freqüência, ser vistos como uma farsa, como uma questão de poder, para que aqueles que estão entre os mais afortunados possam negociar os termos de suas relações com os excluídos.

Invisibilidade significa aqui que o sofrimento humano de certos segmentos da sociedade não causa uma reação moral ou política por parte dos mais privilegiados e não desperta uma resposta adequada por parte dos agentes públicos. A perda de vidas humanas ou a ofensa à dignidade dos economicamente menos favorecidos, embora relatada e amplamente conhecida, é invisível no sentido de que não resulta em uma reação política e jurídica que gere uma mudança social.

Além da miséria em si e todas as conseqüências deploráveis na figura de violações de direitos, uma das expressões mais dramáticas da invisibilidade no Brasil é representada pelos altos índices de homicídios que vitimizam predominantemente as populações mais carentes. Segundo o que a Organização Mundial da Saúde demonstrou em seu último relatório sobre violência, a América Latina possui o pior registro de índices de homicídio no planeta. O Brasil, um dos países mais violentos da região, acumulou mais de 800.000 mortes por homicídio doloso nas últimas duas décadas.33 Mais pessoas se tornam vítimas de homicídio a cada ano no Brasil do que na Guerra do Iraque.34 É importante dizer que uma ampla maioria dos mortos é economicamente desfavorecida, pouco instruída, jovem, masculina, negra e residente na periferia social brasileira.35 Como cuidadosamente demonstrado por Fajnzylber, Lederman and Loayza, há uma forte relação causal entre a desigualdade e os índices de crimes violentos.

Quando incluímos outros índices de criminalidade e o fato de que muitas regiões carentes em grandes cidades são controladas pelo crime organizado, com a complacência dos agentes públicos, estes números nos transmitem a mensagem de que a lei não é capaz de servir como uma razão para a ação em muitos meios. E, principalmente, que as restrições legais, como as apresentadas pelo sistema jurídico penal, são insuficientes para proteger grupos vulneráveis dentro da sociedade. Níveis obscenos de impunidade, além de permitir perdas de vidas humanas entre os mais pobres, por não receberem uma resposta apropriada por parte do sistema jurídico, reforçam a idéia perversa de que essas vidas não possuem valor. O círculo vicioso de altos níveis de criminalidade violenta e a impunidade tornam brutais as relações interpessoais e reduzem a nossa capacidade de compaixão e solidariedade.

Porém, se a invisibilidade pode ser aceita em sociedades tradicionais, ela se torna um problema muito preocupante num regime democrático e num contexto consumista. Para muitos que não experimentaram a sensação de serem tratados com igual consideração e respeito por aqueles responsáveis por aplicar a lei e pela sociedade em geral, não existe razão alguma para que ajam em conformidade com o Direito. Em outras palavras, para aqueles criados como invisíveis em sociedades não tradicionais, há ainda menos razões morais ou instrumentais para respeitar as leis. A conseqüência é que, ao desafiar a invisibilidade através de meios violentos, os indivíduos começam a ser vistos como uma classe perigosa, à qual nenhuma proteção legal deve ser dada.

Demonização, portanto, é o processo pelo qual a sociedade desconstrói a imagem humana de seus inimigos, que a partir desse momento não merecem ser incluídos sobre o domínio do Direito. Seguindo uma frase famosa de Grahan Greene, eles se tornam parte de uma “classe torturável”. Qualquer esforço para eliminar ou causar danos aos demonizados é socialmente legitimado e juridicamente imune.

Para compreender a demonização, nós voltamos nossa atenção às violações maciças de direitos humanos. O uso arbitrário da força pelos agentes públicos ou outros grupos armados, com a cumplicidade oficial, contra pessoas demonizadas - como suspeitos, criminosos comuns, presos e mesmo membros de movimentos sociais - é registrada todos os anos por organizações de direitos humanos locais e internacionais. A base de dados de impressa do Centro de Estados da Violência da Universidade de São Paulo registrou mais de seis mil casos de uso arbitrário e mortal da força por policiais brasileiros de 1980 a 2000. Cada um desses casos resultou em pelo menos uma morte.37

De acordo com o Relatório 2006 da Human Rights Watch, “a violência policial – incluindo o uso excessivo da força, execuções extrajudiciais, tortura e outras formas de maus tratos – persiste como um dos problemas mais incontroláveis de direitos humanos no Brasil”. Em 2006, a polícia, apenas no estado do Rio de Janeiro, matou mais de mil pessoas.

A tortura permanece uma prática comum tanto nas investigações policiais, quanto nos métodos disciplinares usados no sistema prisional e em unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei. Conforme demonstrado pelo antigo Relator Especial sobre Tortura das Nações Unidas, Sr. Nigel Rodley:

A tortura e outros maus tratos similares estão distribuídos em uma base esparsa e sistemática na maioria das regiões do país visitadas pelo Relator Especial [...]. Isso não ocorre a todas as pessoas ou em todos os lugares; acontece principalmente aos economicamente desfavorecidos, criminosos comuns negros envolvidos em crimes pequenos ou em tráfico de drogas de baixa escala [...]. As condições de detenção em muitos lugares são, conforme francamente informado pelas próprias autoridades, subumanas [...]. O Relator Especial se sente compelido a comentar que se sentiu, em muitas unidades de detenção, e especialmente nas delegacias policiais que ele visitou, sensorialmente agredido de forma insuportável. O problema não foi amenizado pelo fato das autoridades estarem frequentemente conscientes das condições que ele iria descobrir e de o terem advertido acerca delas. Ele poderia apenas se simpatizar com a posição comum que ouviu daqueles que estavam agrupados como rebanhos no sentido de que “eles nos tratam como animais e esperam que nós nos comportemos como seres humanos quando sairmos”.39

Rodley conseguiu nessa sentença captar a essência da demonização. Seres humanos tratados como animais não têm razão para agir de maneira lícita. A demonização, além de ser uma violação à lei em si, cria uma espiral autônoma de violência e de comportamento brutal de uma parcela dos indivíduos uns contra os outros e ajuda a explicar não apenas os índices de homicídio alarmantes, mas também a crueldade extrema de algumas manifestações de criminalidade.

A
imunidade perante a lei, para aqueles que ocupam uma posição extremamente privilegiada na sociedade, é a terceira conseqüência da desigualdade profunda que resta ser mencionada aqui. Numa sociedade altamente hierarquizada e desigual, os ricos e poderosos ou aqueles agindo em nome deles se vêem como seres acima da lei e imunes às obrigações correlatas aos direitos das demais pessoas. A idéia de imunidade pode ser entendida focando-se na impunidade dos violadores de direitos humanos ou daqueles envolvidos em corrupção, poderosos ou economicamente favorecidos.

A impunidade dos violadores de direitos humanos é endêmica no Brasil, conforme relatado por grandes organizações de direitos humanos e também reconhecido pelas autoridades federais. Casos como Vigário Geral (1993), Candelária (1993), Corumbiara (1995), Eldorado de Carajás (1996) e Castelinho (2002) ou a reação da polícia aos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital) em 2006 resultou em centenas de vítimas de execuções extrajudiciais, sem maior esforço para responsabilizar os agentes públicos. Porém, talvez, o caso de impunidade mais notório com relação a uma violação extrema de direitos humanos seja o inocentamento do Coronel Ubiratan Guimarães, pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 2005. Ubiratan Guimarães foi o responsável pela operação policial que resultou na morte de cento e onze presos, conseqüência de rebelião em uma prisão em 1992. Depois de treze anos ninguém foi responsabilizado pelo “Massacre do Carandiru”. O Governador do Estado e o Secretário de Segurança Pública da época não foram nem ao menos investigados por seu envolvimento no incidente, mandando um claro sinal de que as pessoas
demonizadas não estão protegidas pela lei.

A imunidade é também um exemplo seguido pelos envolvidos em corrupção. Apesar de o Brasil ter recebido uma nota geral moderada no Índice Global de Honestidade (Global Integrity Index), publicado todo ano pela Transparência Internacional – ocupando a posição sessenta e dois entre os países analisados – o desafio ainda não superado da aplicação imparcial das leis não pode ser ignorado. Nas duas últimas décadas, tem havido dezenas de escândalos envolvendo políticos, empresários e membros do judiciário. A enorme maioria deles acaba em impunidade para todos os envolvidos. Nos últimos dez anos, dos vinte e seis casos de corrupção envolvendo membros da Câmara dos Deputados que chegaram à Suprema Corte, nenhum foi considerado culpado. Nesse exato momento, a maioria dos ministros da Suprema Corte declarou inconstitucional a lei de anticorrupção que permitia políticos e outros agentes públicos serem investigados por juízes de primeira instância. Se essa decisão for mantida pelo Plenário da Corte, estima-se que mais de catorze mil processos judiciais contra agentes públicos por todo o país serão sumariamente extintos, ampliando a percepção de que a lei não se aplica aos poderosos da mesma maneira que é aplicada contra aqueles destituídos de direitos.

A distribuição desproporcional de recursos entre os indivíduos e grupos dentro da sociedade subverte as instituições, incluindo o trabalho das instâncias responsáveis pela aplicação da lei. Uma análise do censo penitenciário brasileiro mostra que apenas os economicamente desfavorecidos e pouco instruídos são selecionados pelo sistema penal brasileiro para serem encarcerados. Essa é a conclusão de Glaeser, Scheinkman and Shleifer, depois de uma análise econométrica do impacto da desigualdade nas instituições judiciárias: “a desigualdade [...] permite que os riscos subvertam as instituições políticas, regulatórias e jurídicas da sociedade em seu próprio benefício. Se a pessoa for suficientemente mais rica do que outra e as cortes forem corruptíveis, então o sistema jurídico irá favorecer o lado economicamente mais fortalecido e não o mais justo. Da mesma maneira, se as instituições políticas e de regulação puderem ser influenciadas pela riqueza e pela influência, então elas favorecerão o que já está estabelecido, não o mais eficiente”. Conforme demonstrado pela experiência do Advogado Geral da União no Brasil “a corrupção é conseqüência direta da concentração perversa de riqueza no Brasil”. A conclusão é que a impunidade, embora seja um fenômeno generalizado no Brasil, é mais acentuado entre os privilegiados.


Fonte: http://www.surjournal.org/index6.php

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